20070606

"A DOENÇA DAS VAGAS LOUCAS" 1

A DOENÇA DA VAGAS LOUCAS - I

- Desgraça! As horas passam e falta-me a inspiração. Sinto-me bloqueada e o meu cérebro encontra-se adormecido - desabafa para si mesmo, Juliana Roberts, enquanto tenta coordenar as ideias e acabar o texto com que irá fazer a sua apresentação, como docente de composição, na Universidade da Terceira Idade, da Cidade do Cinema.
- Meu Deus, como seria bom que a inspiração não me abandonasse, logo agora que preciso tanto de demonstrar a mim própria que ainda sei escrever português.
- É o que faz ter passado tantos anos longe do país. Agora quero falar e oiço-me como se estivesse longe de mim própria, com sotaque galês.
- Meu Deus, sou uma estrangeira!
- Por um lado isso será bom, dado que a cidade do cinema já é uma realidade insofismável, mas por outro, quem vai querer uma estrangeira na sua própria terra?
Juliana recosta-se na sua poltrona de veludo verde e começa a pensar:
- Será que ainda vou encontrar as mesmas pessoas de quando parti para Londres? Será que continuam a ser os mesmos? Será que ele ainda mora lá?
Cansada, não resiste e o sono vence-a. O sonho aflora e mergulha-a num turbilhão de sensações indescritíveis de déjá vu. Sente-se arrastada por um túnel onde espreita uma luz branca que lhe fere os sentidos e ilumina as memórias. Caminha por esse túnel esvoaçando de encontro ao imprevisto, levando na alma a saudade de uma terra que teve de abandonar para se fazer à vida por terras estranhas, onde adquiriu tudo aquilo que perdeu e deixou para trás.
E o túnel foi ficando estreito, cada vez mais estreito e escuro, até que se abre uma porta para o Largo de Santa Cruz e a tal luz branca que lhe fere os sentidos e ilumina as memórias, transforma-se, de repente, na luz do dia, de um dia de sol.
Onde estou? – pergunta Juliana a um sem abrigo deitado em cima de um banco do jardim, daquele jardim em que tantas vezes brincara quando menina, naquele tempo de tantas esperanças e de tantas ilusões.
De repente repara que já não está vestida com o seu fato de treino, nem calça as sapatilhas confortáveis que lhe dão tão bom andar. Sente-se nua mas ao mesmo tempo aconchegada.
Pela expressão do sem abrigo, sabe que se passa algo que não sabe definir em concreto. O infeliz sorri e ao mesmo tempo estende a mão, não para lhe pedir esmola mas para apalpá-la. Fugiu dali correndo, aos tropeções e só parou na Miguel Bombarda, em frente de uma porta de vidros espelhados que lhe mostraram a razão de ser da atitude do sem abrigo.
Estava semi-nua. Por baixo do seu casaco de vison vestia uma lingerie cor-de-rosa, enfeitada por um cinto de ligas e calçava umas botas de cano alto com tacões altíssimos, de metal prateado.
- Esta serei eu? Onde estão os meus sapatos confortáveis e o meu fato de executiva? Olha, tenho o cabelo loiro em madeixas que caem sobre os ombros e me dão aquele ar de mulher fatal que nunca pensei que alguma vez pudesse ser!
Juliana foi percorrendo as ruas, olhando cada recanto que lhe fazia lembrar o passado, aquele passado que estava tão presente nas sensações que começava a sentir.
E se eu fizesse parte da cidade do cinema?
Jójo, o filho da mãe que nas horas vagas pratica vidas de sem abrigo, acabava de descalçar uma bota quando dá por Juliana. –Ói, oh pàzinha estrangeira, que é que tu estás aqui a fazer? Andas à procura de abrigo ou quê ?
Como não obteve resposta Jójó descalça a outra bota, abana a cabeça e olha fixamente a meia rota. -Mas que grande buraco! Ái onde eu estou metido. Este ofício de fins-de-semana está a sair-me caro. O raio das botas! Novas em folha e dão-me cabo das meias e dos pés. Praticar sem-abrigo já está pela hora da morte. E aquela estrangeira que passou Jó? Cá para mim é a Cláudia Shiffer que anda por aqui perdida. Não deve saber ainda onde são os Estúdios. Desde que esta terra mudou capital do cinema é só vedetas. Ainda hei-de ver, com estes que a terra há-de comer, muita mulher boa. Há uma que não posso perder… A Marylin. Boa todos os dias. Agora, li aí no Diário do Deserto, parece que anda metida com o secretário do Júlio de Matos, um safardana que compra quadros aos artistas quando estes estão bêbedos ou andam na penúria. Não os compra porque goste. Compra-os a tuta-e-meia aproveitando-se dos miseráveis. Tuta-e-meia e ainda a prestações. A mim comprou-me ele por 5 euros ( 2 + 2 + 1) cinquenta e seis discos de vinil, lps do melhor que já não havia no mercado. Tá bem, deu para a sopa, e nesses dias não me desloquei à santa casa para comer os restinhos da festa de casamento dos dois velhotes que até veio no jornal. Por acaso deu-me pena ver aquela fotografia!


(continua)

3 comentários:

Anônimo disse...

Não vou perder um único capítulo.
A coisa promete!

Flor disse...

Estou a ficar morta de curiosidade.
O que é que irá saír daqui?

Beijoka

Anônimo disse...

descobri uma maneira de responder...até que está na moda: escrever como anónimo e assinar por baixo.
mais um golpe baixo mas agora sou eu a dá-lo (o golpe!).
Este texto corre o risco de vir a dar uma grande fita...para estrear numa esquadra perto de si. Se o CiCi Miópeles vier a entrar em cena...ou melhor se continuar a entrar...
já tenho uma lágrima no corner do olho.
kira