20070722

PREFÁCIO DO DR.CARLOS ALBERTO CORREIA

Caro amigo Kira:

Lembras-te quando, há muitos anos, citando não sei quem, dizias que cada quadro é um suicídio? Pois penso que até agora sobreviveste muito bem às magníficas tentativas que é cada uma das tuas telas. No entanto, presentemente, estou preocupado. Direi mesmo mais. Estou totalmente aflitinho. Porque me disseram que vais publicar, em livro, as “Queiradas de Cinta”.

Tu desvairaste completamente! Não percebes os perigos em que te vais meter? Então, no país de Sócrates, o actual, em que a delação e a subserviência canina começam a dar fruto, vens tu, ingénuo ou insolente, desafiar a fúria das hidras coetâneas, desvendando o que toda a gente sabe e só eles não vêem?

É que as Queiradas são um perigoso exercício de charme e maldizer!

De charme porque a tua escrita é de uma leveza bailarina. De maldizer porque o gume acerado das tuas histórias entra na carne malsã dos podres pessoais e sociais de muito impante senhor, que não te perdoará pôr a nu o poroso barro onde assenta a sua pesada pesporrência.

Tu não atinas nem um bocadinho. Em “Eubufo” escancaras as portas do desporto nacional da delação; vais às corridas de toiros e dás-nos o teatro na perspectiva do animal, aproveitando para uma estocada profunda no pensamento dominante do macho ibérico; descobres que o Cigano Quaresma é um alquimista ao contrário e que carrega as culpas de quantas habilidades perversas praticam os ilusionistas sociais; desvendas que quem trabalha não tem tempo para enriquecer, logo quem enriquece não tem tempo para trabalhar; atacas os fundamentalistas ambientais e mandas-lhe com o formato nuclear dos moinhos de Alburrica; exautoras o racismo no “Código de Barras”; desrespeitas o olhar soturno do Ilustre Presidente do Conselho de Ministros, Sr. Dr. Oliveira Salazar; sofres com o tratamentos dos idosos nos lucrativos armazéns de velhos que são alguns lares da dita terceira idade e atreves-te a compará-los, de modo negativo, com penitenciárias; crias a figura de “Mecinha”, nua por baixo do vison, atacando os populares frente a mui veneráveis instituições; gozas com a Segurança Social atirando-lhe ao focinho de fuinha o valor desprezível das reformas com que quer que o pessoal sobreviva; tens um “incorruptível” apito dourado com que marcas faltas ao governo e és director duma irrealizável Cidade do Cinema; - então tu, exclamo, pensas poder passar incólume por esta saraivada de humor, de ironia, de sarcasmo, sem que façam alguma perigosa emboscada à tua vida?

Tenho pois receios por ti e pelo facto de alguém, soltando apenas a gargalhada que a tua escrita visualista provoca, não se aperceba, também, da profundidade humanista dos teus textos que a forma utilizada encobre mas não retira.

A brincar a brincar a tua escrita de fluidez de ribeiro revela o muito saber acumulado, o muito sentir e amar, a escondida rememoração de factos e pessoas que vão marcando os teus percursos. Revelas-te, ao esconderes-te, nesse jogo de máscaras que a cada momento inventas e, na essencial inteligência das coisas, ris-te daquilo que mais te doeu. No fundo da ironia existe sempre um resíduo de tragédia. Por isso és grande ao brincar com as pequenas coisas do quotidiano e acertas, sem pudor ou piedade, naqueles que se sentem sagrados e imunes a qualquer evento que possa acontecer ao comum dos mortais. Despejas os líquidos corrosivos sobre os falsos doirados e pões a nu muita pobreza de espírito disfarçada com atavios de falsos brocados

Estás a vingar-nos, amigo, e por isso te agradeço.


Carlos Alberto Correia

3 comentários:

Anônimo disse...

Para quando a continuação das "Vagas Loucas"?
Aquilo prometia!

Não assino porque sou fornecedor do armazém dos pobres e ainda me dispensam por bocas foleiras.

Abraço e vamos tirar as mordaças.

LIBERDADE É PRECISO!

Anônimo disse...

Cuidado com o Cão. Perdão, cuidado com o pão.
um abraço.
kira

Anônimo disse...

Este Dr. Carlos Correia foi muito feliz na sua análise.
Que nunca lhe doa a voz e a escrita!