20130111

A CARTA DA MENINA À MÃE E AO AVÔ...



VALOR DE MERCADO

"Qual é o teu valor de mercado, mãe? Desculpa escrever-te esta pequena carta, mas estou tão confusa e pensei que escrevendo me explicava melhor”.

Vi ontem na televisão um senhor de cabelos brancos, julgo que se chama Catroga, a explicar que vai ter um ordenado de 639 mil euros por ano na EDP, aquela empresa que dava muito dinheiro ao Estado e que o governo ofereceu aos chineses.

Pus-me a fazer contas e percebi que o senhor vai ganhar 1.750 euros por dia. E depois ouvi o que ele disse na Televisão.

“Vou ganhar muito dinheiro porque tenho o meu valor de mercado, tal como acontece com o Cristiano Ronaldo”

Foi então que fiquei a pensar:

“Qual é o teu valor de mercado, mãe?”

Tu acordas todos os dias por volta das seis e meia da manhã, antes de saíres de casa ainda preparas os nossos almoços, passas a ferro, arrumas a casa, depois sais para o trabalho e demoras uma hora em transportes, entras e sais do comboio, entras e sais do autocarro, por fim lá chegas e trabalhas 8 horas, com mais meia hora agora, já é noite quando regressas a casa para fazeres o jantar, arrumar a casa e ainda fazes mil e uma coisas até te deitares quando eu já estou há muito tempo a dormir.

O teu ordenado mensal, contaste-me tu, é pouco mais de metade do que aquele senhor de cabelos brancos ganha num só dia.

“Afinal mãe, qual é o teu valor de mercado?”

E qual é o valor de mercado do avozinho?
Segundo sei começou a trabalhar aos treze anos, trabalhou cerca de quarenta e três e tem uma reforma pouco acima que o dito senhor ganha por dia, óptima, diz ele, se comparada com a da maioria dos portugueses.

“Qual é o valor de mercado do avô, mãe?”

E qual é o valor de mercado desses portugueses todos que ainda recebem muito menos que o avô?

Qual é o valor de mercado da vizinha do andar de cima que trabalha numa empresa de limpezas?

Ontem à tardinha ela estava a conversar com a vizinha do terceiro esquerdo e dizia que tem dias de trabalhar catorze horas, que não almoça por falta de tempo, que costumava comer um iogurte no autocarro mas que desde que o motorista lhe disse que era proibido comer nos transportes públicos se habituou a deixar de almoçar.

Hábitos!

“Qual é o valor de mercado da vizinha, mãe?”

E a minha prima Ana que depois de ter feito o mestrado trabalha naquilo dos telefones, o "call center", enquanto vai preparando o doutoramento? Ela deve ter um enorme valor de mercado!
E o senhor Luís da mercearia que abre a loja muito cedo e está lá o dia todo até ser bem de noite, trabalha aos fins de semana e diz ele que paga mais impostos que os bancos?
Que enorme valor de mercado deve ter!

O primo Zé que está desempregado, depois da empresa onde trabalhava há muitos anos ter encerrado, deve ter um valor de mercado enorme!

Só não percebo como é que com tanto valor de mercado vocês todos trabalham tanto e recebem tão pouco! Também não entendo lá muito bem - mas é normal, sou criança - o que é isso do valor de mercado que dá milhões ao senhor de cabelos brancos e dá miséria, muito trabalho e sofrimento a quase todas as pessoas que eu conheço!

Foi por isso que te escrevi, mãe.

Assim, a pôr as letrinhas num papel, pensava eu que me entendia melhor, mas até agora ainda estou cheia de dúvidas.

“Afinal, mãe, qual o teu valor de mercado?”

“E o meu?"

Beijinhos, da,

 (Neta de um ALD, em Odivelas, a 23 de Agosto de 2012)

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